"Diário de Notícias", 06-08-2023
https://www.dn.pt/cultura/tonicha-zumba-na-caneca-16802256.html
Ninguém nasce Tonicha. Ou, como já dizia Beauvoir na
abertura d"O Segundo Sexo: "on ne naît pas Tonichá: on le devient".
Na verdade, até a própria da Tonicha teve de fazer-se Tonicha, construir-se a
si própria, com garra e luta, apesar de, e ao contrário do que muitos julgam,
Tonicha não ser um nome artístico ou abreviatura de Antónia, seu primeiro nome,
antes o apelido com que viu a luz em Beja, aos 8 de Março de 1946: Antónia de
Jesus Montes Tonicha. Aliás, Tonicha poderia ser Tonicher, nome também usado na
família e apelido de um dos seus irmãos (será isso que explica aquele loiro e
ar germânico?).
Antónia de Jesus Tonicha foi a terceira de quatro irmãos e
teve, segundo a própria, uma infância "muito feliz". A mãe era de
Serpa, o pai de Baleizão, ambos trabalhadores rurais. "Pertenço com
orgulho a essa camada", como fez questão de notar à Crónica Feminina, no
calor da revolução. A revista, seguindo o ar do tempo, acrescentou que ela
punha "na voz, na expressão e no sentir o grito desse povo alentejano. Ela
também "emigrante" dentro do seu país, lutando por uma melhoria de
vida, que o seu meio ambiente lhe negava" (Crónica Feminina, de
4/12/1975). Se pensarmos que também Cândida Branca Flor e Linda de Suza eram do
distrito de Beja, ambas nascidas em Beringel - e pela mesma altura,
meados/finais dos anos 40 -, não deixaremos de perguntar que haverá por aquelas
bandas para fomentar tantas e tão excelsas vozes. Tonicha responde, dizendo
que, enquanto no Alto Alentejo predominam os grupos corais, o Baixo é a terra
das vozes solitárias, logo mais apuradas.
Teve, desde cedo, a mania das cantorias, o "bichinho
das cantigas", primeiro na escola, e depois, já mais crescida e espigada,
nas festas da "Capricho", a Sociedade Filarmónica Capricho Bejense,
fundada em 1916 e que continua sita ao nº. 10 da Rua da Moeda. Por influência
da sua mãe, que tinha uma paixão por Amália, tomou-a por ídolo para sempre e,
por volta dos 16 anos, foi viver para o Barreiro, onde um tio-avô era chefe da
estação dos caminhos-de-ferro. A prima, Elizete Tonicher, e o primo, Francisco
Naia (Francisco Naia Tonicher), eram cantores, e na família do pai havia muitos
amadores de música, pelo que ninguém se opôs a que ela seguisse a carreira nos
palcos, ao contrário do que sucederia com outras estrelas candentes, como Marco
Paulo, que em jovem chegou a apanhar um valente tabefe do pai por estar a ouvir
na sala de jantar, não por acaso, um disco da popular Tonicha.
Mentindo na idade ("Eles fingiam que acreditavam e de
vez em quando chamavam-me e perguntavam se já tinha o bilhete de identidade.
Dizia que ainda não, que ainda lá estava esquecido na casa dos meus pais, no
Alentejo." - Correio da Manhã, de 16/1/2005), Antónia de Jesus, com apenas
16 anos, e levando consigo Manhã de Carnaval e Velas ao Luar, apresentou-se a
concurso da Emissora Nacional, onde ficou aprovada. Acabaria por ingressar nos
quadros da Emissora dois anos depois e, meses volvidos, entraria para a RTP.
Entretanto, fora aprendendo com os maestros Armando Tavares Belo (que foi
maestro titular da Orquestra Ligeira da Emissora durante 36 anos, até 1982),
Fernando de Carvalho e António Melo, entre outros, e recebeu lições de canto de
Corina Freire, uma garganta famosa, que chegou a contracenar com Maurice
Chevalier e que foi também mestra de António Calvário, seu parente.
Em 1965, Tonicha gravou o seu primeiro disco, Canções de Natal, em conjunto com Saudade dos Santos, Gina Maria e Paulo Jorge, e, no ano anterior, fez a primeira gravação a solo, num EP da RCA, Luar Para esta Noite. Com Boca de Amora, de José Gouveia, ganhou, em 1966, o primeiro prémio no Festival da Canção da Figueira da Foz, que voltaria a conquistar no ano seguinte, com A Tua Canção Avozinha, que lhe granjeou também o Prémio de Interpretação ("Avozinha serás sempre/Fada dos sonhos meus").
Entretanto, participou no filme Sarilhos de Fraldas, do
prolífico realizador Constantino Esteves, que Bénard da Costa definiu, não sem
maldade, como "o herdeiro persistente do pior cinema português dos anos 40
e 50". No seu Dicionário do Cinema Português, Jorge Leitão Ramos não é
nada meigo para a película, que apelida de "um dos exemplos do
nacional-cançonetismo no cinema português dos anos 60" e que desfaz assim:
"totalmente inábil do ponto de vista técnico, idiota quando ao entrecho,
pessimamente interpretado, com diálogos de absoluta inanidade, este é um filme
da vertente mais degradada e degradante da história do cinema português."
Não seria essa a opinião dos espectadores, que tornaram esta fita, estreada no
Odeon a 21 de Setembro de 1966, um grande sucesso de bilheteira, premiada pelos
leitores da revista Plateia com os galardões de melhor filme, melhor actor e
melhor actriz (cf. Fernando Madaíl, "O filme que começava com um
piquenique", DN, de 16/6/2007). Com argumento de César de Oliveira, o
elenco de Sarilhos de Fraldas era composto por António Silva, na sua última
aparição no cinema (no papel de Sr. Castelo), Madalena Iglésias, António
Calvário, Nicolau Breyner, Mário Pereira, Manuela Maria, Josefina Silva, Paula
Ribas, Cremilda Gil e Tonicha, claro. O enredo, algo complexo, mete António, um
cantor de revista que namora com a filha do seu empresário, Lurdes, encarnada
por Tonicha. Lurdes, porém, é uma megera e António acaba por se apaixonar por
Madalena, sua colega nos palcos. Às tantas, António e Madalena encontram um
bebé perdido num automóvel e levam-no de boa-fé, mas acabam perseguidos pela
Judiciária, que os intercepta em Leiria. No final, tudo acaba bem, ou mal, nas
raias do péssimo, sendo sintomático que esta meteórica passagem de Tonicha pela
7ª. Arte não seja muito assinalada nas suas biografias ("uma experiência
interessante, mas para esquecer", diria ela ao programa Um Dia Com..., da
RTP, em Março de 1971).
Em 1967, um annus mirabilis da sua carreira, Tonicha
ganharia, além do já citado Festival da Canção da Figueira, o Prémio de
Interpretação do Festival de Ourense, o Microfone de Ouro do Rádio Clube
Português, o Prémio de Imprensa, o Prémio "Voz do Ano", de
Moçambique, e seria ainda eleita "Mulher do Ano" pelo Clube das Donas
de Casa. Depois, um cortejo de êxitos e um sem-fim de prémios: 2.º lugar no
Festival RTP da Canção, em 1968; 1.º lugar no mesmo, em 1971; 9.º lugar no
Festival da Eurovisão, Dublin, 1971; Medalha de Bronze no Festival de Brazov,
na Roménia; 1.º Prémio de Interpretação do Festival de Split, na Jugoslávia;
4.º lugar e 1.º Prémio de Interpretação nas Olimpíadas de Atenas, em 1972;
Prémio da Crítica do VI Festival do Rio de Janeiro, 1972; 5.º lugar no Festival
da OTI, em Madrid, 1972.
Após o 25 de Abril, Tonicha participou numa das primeiras
músicas da revolução, porventura a primeira, Portugal Ressuscitado/Canção de
Combate escrita por Pedro Osório e Ary dos Santos mal saíram da manifestação em
Caxias, no dia 26, a exigir a libertação dos presos políticos. No 1.º de Maio,
ela e dois fernandos, Tordo e Girão, gravaram-na nos estúdios da Musicord, no
Pátio dos Artistas, a Campo de Ourique, e, uma semana depois, a música já
estava nas rádios, com o refrão chileno "Agora, o Povo Unido Jamais Será
Vencido" e um verso sobre a "gaivota da liberdade", a antecipar
o sucesso avícola de Ermelinda Duarte.
Por essa época - mais precisamente, em 24 de Outubro de 1974 -, Tonicha teve a sua primeira e única experiência no teatro de revista, na peça Uma no Cravo, outra na Ditadura, de Sérgio de Azevedo, estreada no Teatro ABC com um elenco de luxo (Ivone Silva, Tonicha, Nicolau Breyner, José Morais e Castro, Fernando Tordo, Herman José, Aida Baptista, Fernando Girão, etc.), e textos, músicas e orquestrações de Ary dos Santos, Bernardo Santareno, César de Oliveira, Rogério Bracinha, Pedro Osório, Thilo Krasmann, Fernando Tordo e Nuno Nazareth Fernandes.
Apesar de se considerar "prá frentex", sobretudo
quando fala dos tempos de Beja, e apesar da sua imagem arrojada de Françoise
Hardy ou Sylvie Vartan lusitana, com minissaias, blusões, hot pants e bonés
("bonés à Tonicha"), que a tornaram um ídolo para muitas teenagers,
que a imitavam e até davam autógrafos em seu nome, e que lhe granjearam muitos
pretendentes, nacionais e estrangeiros, Antónia de Jesus Tonicha só teve um
namorado e marido, João Maria Viegas, que conheceu aos 17, 18 anos, num
espectáculo em Santarém, para o programa Onda Matinal, na Rádio Ribatejo. Não
foi amor à primeira vista, mas estariam juntos até ele morrer na Casa do
Artista, aos 83 anos e de lúpus, em Julho de 2013, naquela que foi, muito
provavelmente, uma das maiores perdas da vida da cantora, já que, além de
marido, Viegas foi seu manager e responsável pelos turning points decisivos da
trajectória tonichiana, nomeadamente a sua passagem para o folclore e para a
música tradicional portuguesa, domínios que ele dominava: nascido em Salvaterra
de Magos, fora contemporâneo e amigo de Alves Redol, ajudara-o nas recolhas
para o Cancioneiro Ribatejano, fizera trabalhos etnográficos pelo país e
estrangeiro. Um pouco a custo, convenceu Tonicha a fazer uma inflexão para o
folclore e os cantares tradicionais, com Vira dos Malmequeres, Resineiro,
Senhora do Almortão, O Gaiteiro Português, Sericotalho, Bacalhau, Azeite e
Alho, Pézinho do Pico, Lá-Ri- Ló-Lé, Vai de Ruz-Truz Truz e sobretudo, acima de
tudo, Zumba na Caneca, o seu maior êxito, do qual, às tantas, já estava para lá
de farta.
A sua ligação a Patxi Andión e a Ary dos Santos, do qual
gravou 48 canções, a participação nos cantos da revolução (além de Portugal
Ressuscitado, os discos Canções de Abril e Cantaremos/Lutaremos, todos de
1974), o facto de se trajar como ceifeira, a modo de tableau vivant
neo-realista ou incongruente Catarina Eufémia mignone e loira, tudo isso levou
a que fosse conotada com o PCP, coisa que ela rejeita, até com certa veemência:
"essa foi uma partida que me pregaram. Eu nunca tive qualquer filiação
partidária", disse à revista Vidas, do Correio da Manhã, em 23/1/2011.
Em 1992, já a RTP perguntava por ela no programa O Que é
Feito de Si e, na verdade, Tonicha optara por uma vida mais recatada no campo,
gerindo uma exploração turística no Ribatejo, em conjunto com o marido. Em
entrevistas, disse que gostava muito de cantar, mas que nunca almejou a fama e
que sempre foi "muito pacata". Conheceu as agruras da glória
("era complicado ir à praia e ter as pessoas a pedirem-me autógrafos.
Todos nós gostamos de ir a um restaurante e poder almoçar tranquilos") e,
por isso, abrandou o ritmo, saiu de cena, mas nunca se sentiu esquecida ou
lamentou a escolha feita, até porque, confessa, fez "tudo o que podia
fazer neste país". É verdade: gravou 308 canções, pelo menos, vendeu mais
de 600 mil discos, esteve na Eurovisão, no Natal dos Hospitais, no "Abraço
a Moçambique", o Live Aid português de 1985, percorreu o globo, cantou a
Ave Maria de Schubert num programa de Herman José, gravou o disco Fátima, Altar
do Mundo. Teve regressos intermitentes (v.g., Regresso, de 1993), foi alvo de
homenagens, de compilações antológicas, em 2010 entrou no musical Vozes de
Trabalho, de Tiago Torres da Silva, no Teatro da Trindade, ao lado de Lourdes
Norberto, Cecília Guimarães, Carlos Mendes, Filipa Pais, Joana Negrão et all.
Em 2017, seria lançada a fotobiografia Tonicha. A Eterna "Menina", da
autoria de Maria de Lurdes de Carvalho, com testemunhos, de Jorge Palma,
Fernando Correia, Ary, Tozé Brito, Baptista Bastos, etc., e do professor
Francisco Marzia, gestor do Facebook do Clube de Fãs de Tonicha, que mantém
também um impecável e actualizado blogue (já a fotobiografia, infelizmente,
além de se encontrar esgotada, não consta sequer do catálogo da Biblioteca
Nacional de Portugal). Em 2019, antes de ganhar o Festival da Eurovisão, Conan
Osíris louvou a deusa: "Eu curto bué a Tonicha e tenho muito respeito,
especialmente pela música que ela foi cantar - Menina do Alto da Serra - a
primeira vez que ouvi isso eu chorei... A Tonicha para mim foi uma das maiores
cenas no festival". Interpelada pela TV 7 Dias, Antónia sentiu-se
lisonjeada, deixando afirmado: "Não tenho seguido, mas, de facto,
disseram-me".
Recentemente, em Maio de 2022, houve em Beja uma gala de
homenagem à sua filha dilecta, um espectáculo intitulado Tonicha - a Eterna
Menina, com apresentação de Júlio Isidro e actuações de Anabela, Daniela
Helena, Fernando Pardal e Mafalda Vasques, mas a coisa, pelos vistos, não
correu bem, nada bem, e o presidente da edilidade mostrou-se "zangado,
revoltado, enganado" por um evento que "não podia ter
acontecido", já que, das 17 músicas em cena, apenas uma era de Tonicha e o
resto não passava de uma retrospectiva, ademais manhosa, dos Festivais da
Canção. Paulo Arsénio pediu desculpas pelo sucedido e deu instruções aos
serviços camarários para devolverem o dinheiro a todos os que, apresentando-se
na bilheteira do Pax Julia, quisessem ser ressarcidos por aquele delito de
lesa-Tonicha.
Nesse capítulo, mais grave ainda foi a monumental gafe de
Judite de Sousa, que a deu como morta, e logo por suicídio. Em 2015, ao
entrevistar Nicolau Breyner para o programa 5 Dias 5 Noites, da TVI24, Judite
Fernanda desabafou, pesarosa: "Há colegas seus, da sua geração, que
acabaram por ter um fim triste. Estou a pensar na Tonicha, que se suicidou, e
estou a pensar na Florbela Queiroz". Nico assentiu, compungido, sem se
aperceber da barraca.
Entrevistada nesse mesmo ano de 2015 pelo programa Giras e
Discos, da Rádio Sim, onde foi apelidada, e bem, de "rainha dos discos
pedidos", Tonicha fez prova de vida e contou o seu dia-a-dia: mora em
Sines, gosta de passear junto à beira-mar, de ler, ouvir rádio, ver televisão,
coisas pacatas. Problemas de saúde complicados (venceu um cancro da mama,
sofreu um atropelamento grave) levaram-na a resguardar-se e, segundo a própria,
a "ficar mais sossegada, mais calma". "Até porque já não tenho
30, 40 anos", disse. Pois não, tem 77 - e muitos mais lhe desejamos.
António Araújo, historiador
*Prova de vida (5) faz parte de uma série de perfis de verão